terça-feira, 29 de dezembro de 2009

Bom era quando os imortais só cochilavam nas Academias

Acabo de assistir a 1ª parte da entrevista com o cientista Raymond Kurzweil. O brilhante Jorge Pontual vai arrancando dele as razões e os argumentos para crer que, num futuro não distante, uma fusão do homem com a máquina estará garantindo ao ser humano, e a ele mesmo, é óbvio, uma vida sem fim previsível ou necessário. Pelo que entendi, através de progressiva e ininterrupta reprogramação de nossos softwares, quais sejam nosso estoque de 23 mil genes. Mas, atenção, minha versão de suas reflexões, aqui, é precária, de primeira vista, e só razoavelmente confiável.

Ontem, antes do almoço, enquanto Katinha mui amorosamente ajeitava minha barbicha e minhas unhas, sintonizei, na mesma GloboNews da entrevista acima citada, uma envolvente mesa redonda coordenada pelo Pedro Bial (esse repórter de primeira, quando não está babando BBB). Discutia-se a tese de um cientista americano (inglês, talvez) com cara e jeitão de hipponga meia-idade, mas levado muito a sério pelos pares, que, atrevido que só, assegura que dentro de 30 anos o homem terá encontrado a vida eterna. Não, nada de místico ou esotérico, é mesmo a abolição da morte na vida terrena, ao menos por razões do que hoje chamamos saúde, e que, então, não sei que nome terá. Em torno à mesa, uns sete ou oito intelectuais, entre geneticistas, poeta, geriatra, quase todos deslumbrados com a perspectiva científica de abolir o fantasma do fim ainda para a presente geração. Afora uma ou outra pontada de bom senso, quase todos eles me pareciam mecanicamente fixados ao somatório de dias se oferecendo como anexáveis ao próprio futuro, fosse ele qual fosse.

É, a imortalidade está definitivamente em pauta, e agora, o que parece novo, podendo descartar as idéias e a dependência de transcendências diversas.

Não descarto a possibilidade de ser inveja, pois contemplo tais conversas com olhos de 61 anos, e com essa saúde meia boca que me sustenta, mas fiquei boquiaberto diante do que ouvi e vi. Baixou o desejo irresistível de pedir uma pinga, me encostar na conversa, e enfiar uma xeretagem vagabunda, uma mistura de filosofia e sociologia de botequim. Pensei, para o papinho inicial, em dois roedores vorazes, dentre tantos outros, que se infiltrariam para avacalhar essa fissura pelo sonho de escapar da morte, ela que era, ou é, a única e derradeira certeza do homem moderno. Cutuco, em breves relances, o ódio e o tédio.

Pensa-se nesse presente eterno sem se pensar que o homem é o predador do homem, e que o ódio disputa com o amor, em luta dilacerante e perene, o direito de dar sentido à vida. É, pode parecer piegas em tal contexto, mas a vida carece de sentido para ser vivida, e, se o sentido não se apresenta, o tédio suga as energias, por vezes inexoravelmente, mesmo dos corpos mais surpreendentes, inteiraços.

Como controlar meu ódio se o único horizonte que o acalma é a finitude de meu inimigo, meu desafeto? E buscar a calma é papel que o amor cumpre, ou finge cumprir. O amor fica para outro papo. Ser imortal é ter o direito de carregar, sem limite de vencimento, as benesses e os gozos de malefícios que porventura causei a outro. É muito, o outro não conseguirá tolerar, até o amor se verá impotente como desculpa ou perdão. O ódio, acho que a história humana mostra, exige a morte como resposta, real ou simbólica, e a idéia da imortalidade anula tais saídas.

Escorregando ainda mais na maionese, arrisco pensar que a imortalidade é incompatível com a civilização, ao menos como a conhecemos hoje. Tornadas imortais, as pessoas se matarão muito mais, por meios ora conhecidos, e por outros que com certeza serão inventados por um renovado, e na certa pulsante, mercado da morte. Meus 15 segundos de Nostradamus: as guerras de hoje, a Aids, os acidentes que conhecemos, são coisas que parecerão secundárias quando se apresentarem as grandes e definitivas batalhas entre os que podem e os que não podem se imortalizar, entre os que têm recursos e conhecimentos para determinar os que devem ou não devem morrer, e, por outro lado, os que, então desencantados da esperança de que a imortalidade se desse em outros planos, decidem que é aqui e agora que a igualdade deve deixar de ser bordão dos espertos e dos poderosos.

Harmonia? Impossível não é. Imortalidade, talvez um dia. Mas a sobrevivência coletiva, as melhores condições de vida, a vergonha diante da miséria alheia, o pudor ecológico frente à natureza (essa inexorável inimiga de toda imortalidade) terão que se sobrepor, nos horizontes hoje visíveis, aos projetos individuais, ou grupais, de negação da morte, e de encontro, aí, de algo que se assemelhe à felicidade eterna.

sábado, 26 de dezembro de 2009

Sobrevivemos

- Calma!
- Calma porra nenhuma!
- Já te dei... o que você ganha tent...
- Cala a boca, caralho. Você fala pra cacete. Só não fui com seus cornos, e chega.
- Pô, cara, os homens estão aí... você não vai...
- Fecha essa porra dessa boca. Mete o olho aí no cano do oitão. Ri, caralho...

O estampido rasga o ar em tons polifônicos. Meu rosto se retorce para o lado num vai e vem pausado, meus olhos se fecham instintivamente em súbitas piscadas. Tento firmar a vista, os óculos estão intransponíveis. A pasta vermelha e branca me cobriu o rosto, sangue e miolos. Retiro os óculos, passo a mão na boca, uma, duas vezes. Braços firmes me amparam e me afastam. Diz-se que o gosto e cheiro das mortes violentas são impregnantes, que seus resíduos se colam à memória como a tintura de iodo se entranha numa pedra porosa. Sei que aquele quase menino viverá pra sempre comigo.

- Ei, por favor, alguém aí já sabe o nome dele?

quinta-feira, 24 de dezembro de 2009

Luzes na boca do beco

Tom Stone

Para Tutukowski, que deu de encher minha bolinha americana

Aqui se morre um pouco de tudo. Fome. Tristeza. Frio. Doença.

A morte é gesto solitário, chega possessivo, mas aqui entre nós não é costume morrer-se só. Nem é hábito, nesses becos, morte de causa única.

Quando nos olham de lá, onde a vida corre, acreditam ver corpos rotos e mentes maceradas por saudades. Bobagem, a dor quando longa esfacela a saudade. Vida real é a seiva das saudades, e ela já não flui. Nem me lembro se há muito.

Divago entre calafrios. O sol já não me aquece, e do céu vai se apagando o azul que inda agora me acariciava os olhos marejados. O ar me enche os pulmões com uma intensidade desesperada, mas a calma é imensa, mesmo doce. Uma mão que reconheço se intromete em meus cabelos. Deve ser o derradeiro calor que sinto. E ele se mistura ao sopro que meu tímpano capta em estertor: "vai com Deus, meu amor!"

terça-feira, 22 de dezembro de 2009

Lembranças não são pensamentos

Pois lembrar é quase só o que me resta. Era uma noite particularmente triste e lenta, a cabeça tão moída por dores e queixas que o corpo decidiu -já tentara antes!- abandoná-la.
Levou consigo a mulher amada, isenta de pudores.
Faz tempo.
Mas, quando chegam as algaravias dos finais de ano, a lembrança dói. Embora cada vez menos.

>>>a incrível escultura é do Ron Mueck<<<

quarta-feira, 9 de dezembro de 2009

Somos singulares

Em 10/10/2003, publiquei no site SACI um dos "posts" de um antigo blog. Como ando, atualmente, meio embotado nas escritas, e para amainar as cutucadas rumo à produção que a Katinha, meu amor, não dispensa quando me vi assim, mais para o molenga, volto a publicá-lo aqui, contando com a condescendência dos que, por algum acaso, já o leram:

Fui honrado com um comentário, via email, do Renato, o Repórter SACI. Ele, que é tetraplégico, visita os lugares públicos de São Paulo, e relata, no site da Rede SACI, as condições de acessibilidade física. Um serviço bacana e que, com os repórteres voluntários, acabará se espalhando. Pois é, de modo arguto e direto, Renato disse a respeito de aspectos de meu texto ("Somos deficientes de tempos civilizados"http://www.saci.org.br/index.php?modulo=akemi&parametro=7665): "Mas olha que não estamos distantes de sermos sacrificados pela sociedade maluca. Você viu que os vereadores de BH querem que apenas 5% dos ônibus sejam adaptados?" E continua o Renato: "Isto acaba matando os deficientes de um outro jeito, não conseguimos sair de casa, ter uma vida normal. Infelizmente, este pessoal só aprende quando acontecer com eles..."

Não aprende não, meu amigo, inclusive porque essa é uma péssima forma de se aprender. E veja, se acontecer com eles, eles não serão mais eles, serão nós. E o cachorro louco volta a correr atrás do rabo. A esperança de uma transformação democratizante e inclusiva está, em parte, em instituições e em leis que nos apresentem no palco como cidadãos, mas está também, e principalmente, num paciente trabalho educativo. Trabalho capaz de expandir e infiltrar uma consciência de apreço e respeito às diferenças, uma consciência de que somos todos diferentes, mais que isso, singulares (o que nada tem a ver com individualismos). Trabalho que, por exemplo, você e a Rede SACI vêm desenvolvendo com maestria.

Somos singulares. A deficiência física é apenas um aspecto da vida de algumas pessoas, você, eu, Tchela, João, Maria, Abigail, Severino etc, e estamos até na moda: com a isenção de impostos para a compra do carrinho 0 Km tem muita gente nova tentando provar que sempre foi do clube. Somos todos singulares, andantes, muleteiros e cadeirantes, surdos e ouvintes, cegos e videntes, feios e bonitos, etc e tal, e, portanto - e isso é material para outros bons papos! -, não cabe falar em normalidade. E gosto de brincar com a idéia de normalidade, sempre a vejo como a realidade e os valores que são próprios aos dominantes e aos poderosos, e que eles tentam provar, por meios pacíficos ou não, que são a realidade e os valores de todos.

No outro texto, eu tratava de um deficiente que não existe, uma entidade quase abstrata. Ele só existe se conseguimos imaginar o somatório, e a junção, de parcelas das vidas de todos aqueles que têm a deficiência física como um dos aspectos de suas existências. Meio complicado, né? Quando falamos, por exemplo, nos deficientes físicos brasileiros, ou nos cegos do mundo, ou nos tetraplégicos de Guarulhos, estamos, ao mesmo tempo, falando de todos os concernidos e de ninguém. Você trouxe a voz do deficiente real, com desejos, raivas, esperanças, essas coisas, e eis o que mais importa, é aí que se dá a luta ou desânimo, a inserção ou a exclusão. Um deficiente passional, contraditório, querendo ser feliz, e que põe vida no meu "deficiente teórico", digamos assim, que é uma mera concepção, mas é útil por nos ajudar na tentativa de compreender as questões que não podem ser analisadas apenas sob o olhar e os interesses de um ou outro deficiente específico.

Está ficando meio longo, né? Vamos mais um pouquinho, prometo resumir. Wright Mills foi um cientista social que viveu nos meados do século passado, e foi um cara que sempre iluminou minhas singelas tentativas de compreender o mundo e a vida social. Ele dizia que a vida real, os fatos sociais, se explicam como cruzamentos da biografia com a história. É de alto risco tentar simplificar isso numa conversa assim rápida, mas vamos lá. As pessoas que vivem numa sociedade, maior ou menor, num determinado tempo histórico partilham esse painel de fundo, sobre o qual suas biografias se exercem, e só assim suas vidas poderão ser compreendidas Brinquei com essa idéia quando, no outro texto, afirmei que meu primeiro sentimento, por não ter nascido numa tribo do Xingú, era de alívio. E se o tivesse, minha biografia, na certa, seria curtinha, por imposição de um painel histórico, e cultural, em vigor.

Falemos da Tchela, nossa querida amiga comum. Ela prepara um livro onde descreverá um claro exemplo: a história de uma mulher deficiente física que seguia vivendo sua vida (biografia) quando, em determinado momento, dá de cara com o computador e a Internet (possibilidades históricas). O encontro redireciona sua própria vida, e vai nascendo daí uma escritora. Tivesse ela, ao se casar, mudado para um pequeno vilarejo, talvez o mundo visse surgir, dessa conjunção, uma boa doceira, uma requintada bordadeira, e eu não teria tido o imenso prazer de conhecê-la, mesmo que só virtualmente.

Ainda a Tchela, e que ela me perdoe pelo uso e pelo abuso do exemplo. No Maré, seu concorrido blog(http://tchela.blogspot.com/), ela nos encanta com pedacinhos bem contados de sua vida. Em algum momento das últimas décadas do século passado, ela (biografia) se encontra com o seu Benê (biografia), um homem que, por algum motivo biográfico, desenvolveu a liberdade pessoal e a segurança que não lhe impediram de se apaixonar por uma mulher numa cadeira de rodas. E tal fato foi possível por eclodir num tempo histórico em que um tal relacionamento é tolerado, talvez até aprovado. Tivesse tal amor desabrochado em famílias japonesas lá, mas também aqui, e o sofrimento estaria encomendado. Não sei se ainda hoje, mas até pouco tempo, numa família japonesa mais tradicional, a filha deficiente não poderia se casar e reproduzir, e, com freqüência, condenaria suas irmãs ao eterno celibato. E me deu grande saudade da querida Sueli, e fazem tantos anos que não a vejo, uma filha de japoneses, uma inteligência privilegiada que pôs a nocaute uma paralisia cerebral que se meteu em seu caminho.

Renato, peço a você, e ao eventual leitor, uma última gota de paciência. Contarei mais um pequeno episódio meu, tentando reforçar a idéia de que falar de deficientes é falar de pessoas específicas, com histórias específicas, que têm a deficiência como um aspecto que marca suas vidas de forma mais ou menos determinante, conforme o caso. E que cada caso só será compreendido percebendo-se como foram se construindo as possibilidades ou impossibilidades de uma vida, num determinado tempo histórico.

Chego eu na porta de um restaurante. Estaciono meu carro meio chic, cinza, automático, ano 2000, me transfiro para a cadeira de rodas e sigo em frente com minha mulher e meu filho, ambos aparentemente saudáveis e felizes. Por atração de estranho magnetismo, meus olhos se cruzam com os de um moço que, em surrada cadeira de rodas, vende chicletes no sinal (farol ou semáforo, em outras plagas). Negro, pobre, deficiente, maltratado pela vida. Pensei, de relance: "se ele for analfabeto e gay estará fechado o círculo da exclusão mais cruel e impiedosa". Tento um sorriso. Ele balança a cabeça, sem aliviar a tensa rigidez do rosto. Sinto o seu olhar percorrendo aqueles 30 ou 40 metros que nos separam, e sinto que, em alguma proporção que não consigo precisar, ele me contempla com uma expressão de admiração e mágoa, talvez uma pontada de ódio. Ele empinou a cadeira, deu meia volta e se afastou por entre os carros. Naqueles parcos segundos, ele não acreditaria, talvez pensasse em deboche, eu o invejei. Invejei suas habilidades com a cadeira, sua coragem pessoal, sua luta, que imaginei obstinada, pela sobrevivência.

Éramos ambos deficientes físicos, mas os outros aspectos ou faces de nossas respectivas existências haviam criado aquele abismo imenso. A solidariedade entre nós, para se estabelecer, teria que vencer vários obstáculos. A deficiência nos teria identificado não fossem tão opostos nossos mundos. Um dia desses, talvez, nos encontremos numa manifestação pelo rebaixamento das calçadas, ou na campanha de algum político deficiente físico, ou com base nas entidades representativas dos deficientes. O importante, Renato, é que se continue lutando pelas causas dos deficientes, esses entes envolvidos por direitos e deveres, mas que não percamos de vista um fato: eles só serão atraídos para a luta comum se sentirem os movimentos como capazes de penetrar e reordenar as próprias e específicas biografias.